A Política Externa Portuguesa

Pedro Sanchez da Costa Pereira
Diretor-Geral de Política Externa
24/09/2018

Nota prévia: o presente texto sintetiza as linhas mestras da política externa portuguesa tais como definidas pelo atual Governo. Foi publicado em língua inglesa no livro The Road Ahead - The 21st-Century World Order in the Eyes of Policy Planners (2018, Fundação Alexandre Gusmão), cuja versão integral se encontra disponível aqui.


 

I. Introdução: Caracterização da Política Externa Portuguesa

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É habitual ouvir-se dizer que a revolução de abril de 1974 marcou o início de uma nova era na política externa portuguesa, que se passou desde então a desenvolver de acordo com três prioridades principais: a Europa, o Atlântico e o mundo de expressão portuguesa. Se estas se mantêm hoje plenamente atuais, o Governo confirmou programaticamente nesta legislatura três outras prioridades para a sua ação externa, designadamente, o acompanhamento e a valorização das comunidades portuguesas, a internacionalização da economia e o reforço do multilateralismo.

É com esta representação da política externa portuguesa que partiremos para o exercício que nos propomos fazer: refletir sobre o modo como os principais desafios e os fatores de mudança da ordem internacional afetam a política externa portuguesa e de que forma esta se tem adaptado e evoluído na prossecução dos interesses que lhe subjazem. Os três primeiros eixos – Europa, Atlântico e língua portuguesa – derivam de incontornáveis condicionantes geográficas e históricas bem conhecidas. Portugal é um país europeu mas não continental. É sobretudo um país atlântico – até com centralidade atlântica (Fernando Pessoa dizia-nos ser Portugal o rosto com que a Europa fita o ocidente) – mas culturalmente inscrito no mundo latino e mediterrânico e não no anglo-saxão. É periférico e de média dimensão no contexto europeu, mas a sua zona económica exclusiva é a terceira maior da União Europeia. A capital mais próxima de Lisboa é Rabat e não qualquer outra capital europeia. Tem apenas uma fronteira terrestre, estável há muitos séculos.

Desde antes do século XV que a política externa portuguesa se construiu no equilíbrio possível a cada momento, entre a pressão continental e as possibilidades que o oceano oferecia. Daí resultaram ciclos de aproximação ou afastamento ao continente europeu, a criação de alianças que obstassem ao peso de Espanha e a procura de um espaço próprio fora do continente europeu – bem para além do Atlântico – que viabilizasse a existência de Portugal enquanto nação soberana. Assim nasceu e se consolidou o mundo de expressão portuguesa, eixo sobretudo materializado na relação especial com os países africanos de língua oficial portuguesa e com o Brasil e Timor-Leste, congregados hoje na CPLP.

Após 1974, com o fim do Estado Novo e a estabilização do Portugal democrático, a prossecução destes três eixos tornou-se assumida e consensual, e desde 1976 que todos os governos os têm enunciado nos seus programas. Portugal envolveu-se empenhadamente na Europa, onde naturalmente se inscreve, e no projeto europeu, que trouxe também uma profunda mudança de paradigma das relações luso-espanholas, densificou a sua presença – fundadora – na NATO, e, na linha do que já existia com o Brasil e ao mesmo tempo que se assumia como parte integrante do espaço ibero-americano, desenvolveu relações profundas com os novos Estados africanos de língua portuguesa e com Timor-Leste.

Paralelamente, a política externa portuguesa foi chamada a responder às necessidades das várias comunidades de origem portuguesa geradas pelas sucessivas vagas migratórias que ocorreram a partir do final do século XIX. Cerca de um terço da população com nacionalidade portuguesa, ou que a ela tem direito pelo nascimento, vive hoje fora de Portugal, em comunidades muito diversas, em geral bem-vindas, bem integradas e economicamente estáveis. A relevância destas comunidades para a ação externa do país tem-se aprofundado a tal ponto que passou a constituir de per se um quarto eixo orientador da ação externa, autonomizando-se do eixo referente ao mundo de língua portuguesa onde anteriormente se encontrava.
Para além desta quarta dimensão, uma análise rigorosa da política externa portuguesa não pode ignorar que, nas últimas décadas, o país tem experimentado um forte movimento de internacionalização da sua economia. Este desenvolvimento tem merecido uma atenção crescente e justifica plenamente a criação da nova Secretaria de Estado da Internacionalização no Ministério dos Negócios Estrangeiros. A internacionalização da economia portuguesa constitui-se hoje como uma verdadeira linha de ação autónoma de política externa e um eixo essencial para a compreensão e o sucesso global desta última.

Simultaneamente, assistimos também a uma presença crescente de Portugal no plano multilateral, em variadas organizações, mas sobretudo no quadro das Nações Unidas. Esta presença é a face visível de uma opção consciente e valorativa em defesa do multilateralismo enquanto princípio, objetivo e prática no exercício de uma política externa que busca o bem comum à escala global. O reforço do multilateralismo constitui-se como o sexto principal eixo orientador da política externa portuguesa.
Conceptualmente, são estas as seis dimensões que ilustram a ação exterior de Portugal tal como é hoje prosseguida. Será relevante lembrar que esta política externa foi, nos últimos 40 anos, extremamente bem-sucedida. A integração europeia permitiu que Portugal consolidasse solidamente o seu sistema democrático e proporcionou ao país um período de desenvolvimento económico e social sem precedentes no século XX. A pertença ao espaço euro-atlântico e à NATO assegurou a Portugal um lugar no bloco dominante após o final da guerra fria com os parceiros com os quais partilhamos os valores fundamentais e garantiu um período de paz contínua raro na história recente da Europa. A construção de um espaço político próprio dos falantes de língua portuguesa proporcionou-nos uma nova compreensão da nossa própria identidade e a pertença a um espaço pluricontinental de matriz histórica e linguística, assente no aprofundamento de relações políticas e económicas substanciais entre os Estados independentes e soberanos que partilham o que foi historicamente o espaço mais visível de presença portuguesa no mundo. Portugal internacionalizou-se muitíssimo, seja a nível comercial, cultural ou político. No plano multilateral, e basta olhar para as Nações Unidas, o relevo da contribuição portuguesa é cada vez mais visível.


 

II. A Política Externa Portuguesa face aos seus Constrangimentos e Desafios

Aprossecução da política externa portuguesa enfrenta constrangimentos e desafios complexos que a limitam e condicionam, mas que podem frequentemente constituir-se como oportunidades, dependendo da forma como são tratados. Alguns corresponderão a desenvolvimentos de tendências globais conhecidas e previsíveis, outros a pontos de tensão não resolvidos próprios dos espaços em análise, e outros ainda advêm de acontecimentos não esperados.

 

A. O Espaço Europeu
Definitivamente terminado o ciclo imperial, a Europa voltou a ser o espaço natural onde Portugal se insere. Desde a sua adesão às então Comunidades Europeias, em 1986, Portugal tem consistentemente sido um país profundamente empenhado na construção e no aprofundamento do projeto europeu. A União Europeia constitui hoje, a seus olhos, o mais eficaz instrumento para garantir a paz e a prosperidade na Europa e para preservar e promover os valores fundamentais em que acredita, para além de ser o meio de resposta mais adequado para fazer face aos complexos desafios cuja natureza cada vez mais transnacional crescentemente obriga à procura de soluções conjuntas.
Portugal beneficiou extraordinariamente com a sua participação no projeto europeu. Consolidou a sua democracia, sendo esta, aliás, a principal razão que motivou a sua decisão de aderir às então Comunidades Europeias, e não tanto, como muitas vezes se julga, as vantagens económicas e financeiras – embora muito reais – proporcionadas pelos fundos europeus estruturais e de coesão. Portugal modernizou-se, desenvolveu-se, e sobretudo reinventou-se em torno de um projeto consensual para a generalidade da sociedade portuguesa.

Vivemos tempos de euro-entusiasmo e ultrapassámos momentos difíceis, a exemplo da recente crise económica e financeira que grassou a partir de 2008, uma das mais complexas jamais atravessadas, cujos efeitos coincidiram com a fase mais aguda da crise migratória e a intensificação do terrorismo. A União Europeia está hoje ao mesmo tempo mais forte e mais frágil. Mais forte, porque foi capaz de construir novos instrumentos, alguns deles absolutamente notáveis de pragmatismo e eficácia; mas está ao mesmo tempo mais frágil, porque os novos e sucessivos desafios que entretanto surgiram ultrapassam muito, em escala e dimensão, todos aqueles com que até então teve de se confrontar. São disso exemplos as crescentes dificuldades no processo de tomada de decisão numa União que passou de 15 para 28 membros e que enfrenta hoje o seu primeiro movimento verdadeiramente desagregador com a saída do Reino Unido; o surgimento de tendências populistas e antieuropeias e de blocos criados em função de alinhamentos geográficos, interesses político-económicos partilhados ou afinidades históricas, ideológicas ou linguísticas, que têm um impacto negativo na capacidade de construção de consensos no contexto europeu. Se é normal e parte da experiência europeia que os Estados Membros se associem em função de preocupações partilhadas, a cristalização de posicionamentos em contracorrente à construção de um projeto comum estimula frequentemente a ideia da existência de “várias Europas”, por vezes dificilmente conciliáveis ou mesmo incompatíveis com a construção do projeto europeu.

A estes acrescem outros desafios importantes, como a resolução eficaz da crise migratória, longe de solucionada, neste momento apenas em estado latente; a dificuldade de criar um entendimento comum sobre as modalidades de uma verdadeira e absolutamente necessária União Económica e Monetária, que consiga fazer face eficazmente a novas crises económicas e financeiras que forçosamente voltarão a aparecer; a construção de um pilar europeu de segurança e defesa, em articulação com a NATO, que seja verdadeiramente capaz de projetar segurança; o combate contra o terrorismo, que assume hoje uma proporção nunca antes vista; e, sem ser exaustivo, mas como pano de fundo para tudo isto, o desafio de nos darmos meios de ação e assegurarmos o financiamento da União Europeia num quadro marcado pela saída de um importante contribuinte líquido, o Reino Unido, e pelo constante surgimento de múltiplos desafios que obrigam a novos meios para que se lhes possa eficazmente fazer face.

Portugal, como muitos outros países europeus, é vulnerável aos efeitos negativos destes e dos muitos outros desafios que compõem a agenda interna e externa da União Europeia. A sua postura é, contudo, impecavelmente positiva e construtiva no que se refere à procura de soluções verdadeiramente europeias e que favoreçam a prossecução do projeto europeu, cujo sucesso é assumido por Portugal como um interesse vital por si próprio. É por isso que Portugal se dispõe muitas vezes a aceitar soluções que no curto prazo que não são necessariamente as melhores de um ponto de vista estritamente nacional, desde que possam ser objeto de um consenso ao nível europeu, com o propósito principal de manter a unidade e permitir a afirmação de decisões verdadeiramente europeias. Manter a coesão europeia e criar mecanismos que permitam responder de forma eficaz e menos traumática a dificuldades futuras é essencial para um país como Portugal, cuja economia e tecido social são ainda vulneráveis no espaço europeu.

 

B. O Eixo Atlântico
Contrariamente ao que muitos possam pensar, o chamado “eixo atlântico” não se refere em primeira mão ao oceano atlântico propriamente dito, já que para a política externa portuguesa os oceanos em geral, e não apenas o Atlântico, são globalmente cada vez mais prioritários. Na verdade, o que está aqui em causa é a dimensão de segurança que o espaço atlântico encerra, que se traduz sobretudo na pertença de Portugal à Aliança Atlântica e no seu relacionamento com os parceiros para nós mais importantes neste contexto, o Reino Unido desde há quase sete séculos e, desde meados do século passado, sobretudo os EUA.

Esta situação requer hoje ajustamentos. O Reino Unido, que, com Portugal, tem sempre sido um parceiro particularmente ativo na União Europeia a favor do reforço do pilar europeu de defesa numa lógica de complementaridade e de não duplicação com a NATO, que se deve manter como a principal organização de defesa coletiva, deverá em breve abandonar o projeto europeu e enfraquecer assim a sensibilidade mais atlantista na UE. Por outro lado, a recente mudança de Administração nos EUA trouxe uma alteração substancial no relacionamento da única superpotência com a Europa. Isso tornou-se particularmente visível no quadro da NATO, com exigências norte-americanas acrescidas de empenhamento europeu e com uma nova atitude em matéria de comércio externo. O congelamento das negociações de um vasto tratado comercial entre os EUA e a União Europeia (TTIP) é disso infelizmente exemplo.

A própria conjuntura internacional está em rápida transformação num contexto marcado por crescentes incertezas e maior insegurança. A NATO, na prática, não obstante querer projetar segurança em todos os azimutes, concentra-se mais nas ameaças a leste e sudeste. Mesmo quando age noutras áreas, como no espaço atlântico, é muito frequentemente com a preocupação principal, quando não exclusiva, de contrariar e fazer face às ameaças a leste. A sua vocação para agir no espaço magrebino e saeliano, de onde poderiam surgir as maiores ameaças para o flanco sul da União Europeia, onde se encontra Portugal, é menor. Por estas razões, é prioritário para Portugal promover a articulação dos vários instrumentos existentes de segurança e defesa, num espírito de complementaridade e não duplicação, no respeito das especificidades de cada um, e, se necessário, a criação de novos meios que permitam a projeção de uma verdadeira estabilidade e a garantia de defesa num circulo que abarque verdadeiramente 360º, portanto também a sul do mediterrâneo.
Em qualquer circunstância, Portugal é um aliado leal no quadro da NATO e sinceramente empenhado no aprofundamento do projeto europeu nos domínios da segurança europeia, como também o será em quaisquer outros alinhamentos em que participe com os seus parceiros para fazer face a ameaças comuns.
Ao nível nacional, Portugal teve de fazer face ao desafio da diminuição da presença norte-americana nos Açores, estruturando e apresentando várias iniciativas. O lançamento do “Atlantic Internacional Research Center – AIR Center”, projeto que visa a promover a cooperação e a investigação científica internacional nas áreas dos oceanos, clima e espaço, e a criação de um Centro de Defesa no Atlântico, ambos tirando partido da localização estratégica dos Açores, são exemplos do interesse de Portugal por iniciativas que contribuam para valorizar a posição estratégica de Portugal no Atlântico.

Ponto importante, devemos ter presente que, se Portugal é um país periférico no quadro europeu, já no contexto atlântico a sua centralidade é mais do que evidente. Posicionado entre o Atlântico norte e o Atlântico sul, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, entre o resto da Europa e as Américas e África, basta olhar para um mapa – ou atentar na sua participação empenhada na UE e na NATO, mas também na CPLP e na Conferência Ibero-Americana – para ver que Portugal tem aqui a sua verdadeira e principal centralidade geopolítica, que justifica a prossecução de um verdadeiro eixo estratégico de atuação.

 

C. O Espaço de Língua Portuguesa
O espaço de língua portuguesa, que encontra a sua melhor expressão – mas que não se esgota – na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), enfrenta desafios assinaláveis. Integrada por países que se inserem em dinâmicas regionais próprias, cada um destes perspetiva a sua participação na CPLP de forma diversa, quer quanto aos objetivos nacionais que prossegue com essa mesma pertença, quer quanto aos interesses comuns da organização como um todo. Jovem organização, a CPLP tem ainda dificuldade em ser percecionada pelos cidadãos dos seus vários Estados membros como uma entidade que lhes proporciona vantagens concretas ou uma pertença identitária.

O potencial deste espaço é, contudo, imenso. A CPLP e o mundo de língua portuguesa assentam numa matriz identitária comum de raiz histórica e linguística com um potencial muito significativo, coincidindo com um imenso espaço populacional, comercial e dotado de importantes afinidades culturais, que se espraia por nove países na América, África, Ásia e Europa. A língua portuguesa é hoje uma das línguas europeias que mais cresce e o idioma mais falado no hemisfério sul. Perspetiva-se um total de 400 milhões de falantes em 2050 e de 500 milhões, a maioria dos quais em África, até 2100. A CPLP enquadra inúmeros projetos e proporciona relações de colaboração não apenas entre Estados, mas também entre uma enorme diversidade de organizações da sociedade civil, tendo um dinamismo muito superior ao que é habitualmente percecionado pela opinião pública. Um sinal da sua vitalidade, por vezes erradamente minimizada, é o interesse que a CPLP tem despertado junto de Estados terceiros, havendo hoje um número muito considerável de parceiros internacionais, mais do que o próprio número dos seus Estados-membros, que adquiriram ou que estão em vias de adquirir o estatuto de Observadores da CPLP.

Portugal, que contribuirá com um Secretário-Executivo a partir de janeiro de 2019, olha para a CPLP com uma atenção muito particular e considera-a como a melhor forma de viabilizar a cooperação entre países que muito se estimam e que têm muita da sua história em comum, que partilham a mesma língua e valores fundamentais. Num mundo cada vez mais integrado e globalizado, a ambição de Portugal para a CPLP passa pelo progressivo aprofundamento de um espaço no qual todos os nacionais dos seus vários Estados-membros se possam sentir em casa, no concomitante pleno respeito das suas identidades nacionais, e onde os seus respetivos países possam contar com o apoio uns dos outros para fazer face aos desafios com que se confrontam. Procurar incrementar a visibilidade da CPLP junto da população dos seus Estados Membros implicará conseguir que a organização seja capaz de se aproximar mais do cidadão comum, tornando-se promotora de iniciativas com impacto alargado e percecionado como útil, que reforcem o sentimento de pertença a este espaço partilhado. É com este espírito que Portugal acredita fortemente na importância da proposta luso-cabo-verdiana que visa facilitar a mobilidade, através do direito de residência, do reconhecimento de títulos e qualificações e da portabilidade de direitos sociais dentro do espaço da CPLP.

Muito mais pode e deve ser feito para afirmar a presença deste espaço no mundo, da sua língua e da sua imensa riqueza e diversidade cultural. É um verdadeiro desafio, e por isso foi decidido afirmar ainda mais a centralidade do Instituto da Cooperação e da Língua (Instituto Camões) na ação externa de Portugal. São estratégicas para a política externa portuguesa “a afirmação do alcance global da língua portuguesa, a projeção internacional da cultura portuguesa e das culturas de língua portuguesa e a maneira como estabelecemos e concretizamos parcerias de cooperação para o desenvolvimento” .

D. O Acompanhamento e a Valorização das Comunidades Portuguesas
As comunidades portuguesas continuam a crescer e a diversificar-se. O principal objetivo é naturalmente o de procurar contribuir para o seu bem-estar e segurança e promover a sua integração tão qualitativa quanto possível no espaço em que se encontram, preservando as suas raízes e memória portuguesas.

Para termos uma noção da dimensão deste fenómeno teremos de ter em consideração que Portugal tem dez comunidades com mais de 120 000 pessoas, espalhadas por três continentes (Europa, África e América), para além de núcleos populacionais relevantes na Ásia e na Oceânia.

A importância das comunidades portuguesas no exterior justifica, assim, plenamente, que passassem a constituir um eixo autónomo para a política externa portuguesa. São cada vez mais variadas e heterogéneas (Portugal presta hoje serviços consulares em 148 países) e colocam desafios adicionais à política externa portuguesa pela sua mudança de perfil e consequente alteração das expectativas que têm relativamente ao papel do Estado. Acresce que, perante comunidades numerosas e dispersas geograficamente, é quase inevitável que, num dado momento, alguma esteja afetada por uma qualquer situação de crise, natural, humana ou política, na qual a política externa portuguesa seja chamada a agir. Responder às necessidades das comunidades de língua portuguesa implica perceber a sua heterogeneidade e as suas diferentes origens e expectativas. Implica um amplo e persistente trabalho de proximidade apesar da dispersão geográfica e compreender o contexto específico em que cada uma se insere.

Também a gestão dos serviços consulares se tornou muito mais exigente e complexa. Portugal tem procurado que os seus serviços consulares sejam capazes de se aproximar – até por via tecnológica – das necessidades quotidianas dos portugueses que vivem no estrangeiro. O esforço de acompanhamento é permanente, político, social e económico. Crises económicas e sociais, situações de insegurança grave ou outras exigem um acompanhamento próximo, uma observação atenta dos espaços onde as comunidades se inserem e um esforço político-diplomático.

Não podemos esquecer, por outro lado, o potencial político, cultural e económico das comunidades portuguesas no exterior. Geralmente bem integradas nas sociedades onde vivem, em muitos casos já nas segundas e terceiras gerações, as comunidades constituem uma rede privilegiada para a promoção de investimentos e de trocas comerciais, a divulgação da língua e cultura ou a aproximação política aos estados onde residem. Portugal tem ativamente procurado criar estruturas que aproveitem este potencial e tem bem presente, na sua ação externa, que uma comunidade bem integrada em lugares de destaque e de influência no seu país de acolhimento é frequentemente muito importante para a prossecução e defesa de interesses portugueses.


E. A Internacionalização de Portugal
Portugal, cada vez mais, internacionaliza-se. As exportações portuguesas, que representavam 27% do PIB em 2005, representam hoje 43% (2017). Nos primeiros 15 mercados de exportação, para além de vários parceiros da União Europeia, contam-se os Estados Unidos, Angola, o Brasil, a China, Marrocos e a Suíça. Portugal alcançou recentemente um equilíbrio assinalável na sua balança comercial e uma notável diversificação de parceiros.

Estas tendências, que advêm sobretudo do dinamismo do tecido económico e empresarial, não são, contudo, totalmente independentes das orientações da política externa portuguesa. O Estado não se substitui aos empresários portugueses nas opções feitas por estes últimos, mas procura ativamente abrir caminhos e criar as melhores condições para o sucesso dos operadores económicos portugueses.

E não só. O esforço de internacionalização não visa apenas as exportações em sentido clássico, mas passa também por outras áreas: pela língua, cujo potencial já referimos, pela cultura, pela cooperação, pela promoção da mobilidade e pela ciência. Todas estas áreas têm enormes potencialidades de sinergias umas com as outras. Em todas elas a política externa é chamada a contribuir, promovendo, dinamizando, estabelecendo laços, procurando criar conexões que se prolonguem no tempo. O diálogo bilateral regular, ao nível político, com um cada vez maior número de parceiros, contribui fortemente para este esforço de internacionalização.

Portugal quer hoje estar mais presente em cada vez mais espaços. Fá-lo com a convicção de que este seu maior esforço de abertura traz prosperidade e crescimento, mas, igualmente, com a consciência de que na exata medida em que quanto mais se abre também mais se expõe às fragilidades e incertezas que possam existir ou aparecer nos espaços em que está presente. A promoção da estabilidade internacional, o respeito por regras claras, comumente aceites e criadoras de previsibilidade e segurança, é assim do máximo interesse de Portugal.


F. O Multilaterelismo enquanto Resposta e Vocação
Portugal, enquanto país com vocação global, acredita no multilateralismo enquanto condição necessária de uma ordem internacional assente na concertação e no respeito por regras. Portugal é membro de quase todas as grandes organizações internacionais e sabe que ganha em peso e influência quando se relaciona com outros atores internacionais que prosseguem fins compatíveis com os seus. Consegue por esta via potenciar a sua presença e a sua influência e ultrapassar frequentes limitações de meios ainda mais acentuadas com a ampla dispersão dos seus interesses.

Perante os imensos desafios que se colocam ao nível internacional, Portugal prossegue ativamente o multilateralismo. É ao mesmo tempo uma característica da sua ação externa e um objetivo prioritário da sua política externa. Daí a importância e a valorização contínua que confere ao papel das Nações Unidas como elemento central na ação multilateral nos principais assuntos que compõem a agenda internacional e que interessam muito particularmente a Portugal, sejam eles o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, as alterações climáticas, as migrações, o acolhimento dos refugiados, os assuntos do mar e a sustentabilidade dos oceanos.

Portugal tem tido muito sucesso no quadro multilateral. Foi eleito por três vezes para o Conselho de Segurança das Nações Unidas e, aquando da eleição para o mandato que recentemente cessou no Conselho de Direitos Humanos, conseguiu uma votação muito significativa. Não podemos esquecer, também, a eleição por aclamação de António Guterres para o cargo de Secretário-geral das Nações Unidas, bem como, mais recentemente, a de António Vitorino, para o lugar de Diretor-Geral da Organização Internacional para as Migrações que, sendo sobretudo devidas ao mérito próprio dos candidatos, representam igualmente um sucesso evidente da diplomacia portuguesa no plano multilateral.

A promoção do multilateralismo, aliada a uma política externa baseada em valores e no diálogo e à inserção do país em múltiplos espaços à escala global, levou a que Portugal seja hoje percecionado por muitos Estados como um país disponível para perceber e dar voz às suas preocupações, sem uma agenda nacional egoísta e empenhado na promoção geral do bem comum e do respeito das regras internacionais.

A defesa do multilateralismo em todos os planos da sua política externa, e a participação ativa no quadro das principais organizações internacionais, mormente nas Nações Unidas, assumem-se como dimensões estruturantes e identificadoras da política externa portuguesa.


III. Conclusão

Portugal tem uma política externa estável que decorre naturalmente da sua História e geografia, mas também de opções que têm sido as suas. A Europa é uma prioridade porque é esse o seu primeiro espaço de afirmação. O Atlântico assegura-lhe a profundidade estratégica que de outra forma não tem. A pressão continental levou-o a olhar para os oceanos e, explorando-os, a criar um mundo português à escala global, marcado pela língua e pela dispersão das suas comunidades. Protagonista histórico da primeira globalização, encontra na internacionalização da sua economia uma via promissora para prosperar. No quadro multilateral, que privilegia, compensa sem complexos a sua relativamente pequena dimensão à escala global.

Soube ao longo dos tempos construir uma imagem, que é real, de um país com muita facilidade em dialogar com todos, que não pretende impor a sua visão das coisas, que acredita num mundo governado por regras claras e internacionalmente aceites e que tem por principal agenda no quadro multilateral a criação de pontes e a procura do bom entendimento. Portugal afirmou-se como um país equilibrado e moderado, não seguidista, independente, tolerante sem prescindir do respeito pelos valores fundamentais, do estado de direito e da pessoa humana. Numa característica que é muito sua, Portugal mostrou também que a generosidade e o sentido de responsabilidade podem constituir-se como objetivos centrais da sua política externa. Nunca ninguém poderá julgar a ação de Portugal a favor da autodeterminação e independência de Timor-Leste por quaisquer outros motivos que não fossem esses.
São estes os principais parâmetros que moldam a política externa portuguesa e com os quais Portugal deverá contar para fazer face aos principais desafios com que se confronta.

O seu inegável sucesso tem-lhe granjeado respeito e confiança, sendo Portugal crescentemente visto por muitos Estados, como atestam várias eleições bem-sucedidas nas últimas décadas a importantes cargos internacionais, como um parceiro equilibrado, que respeita os outros, confiável na procura do bem comum, e muito credível na forma em como prossegue os seus objetivos e faz frente aos desafios que são os seus.

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